#43 O areal

Flávia Six
4 min readJul 22, 2021

Era vez uma menina sozinha na praia. A toalha única, sem parceiras ao lado da areia. Sorte é que trouxera todos os livros, em sua mala de duas rodas, arrastando-a pelas duplas de pessoas, num silêncio baixo que pedia desculpas, até sentar em si e ter de haver o que fazer. Pelas laterais, os pares todos se entretinham. Ninguém lhe dava atenção, mas sendo ela ímpar, sentia-se aberta e desajeitada. Os livros é que diminuíam seu lugar desposto. Ela organizava-os cuidadosamente, em pilhas grandes por ordem decrescente de vontade. Cada ação feita com muita delonga: a ocupação disfarçava a sua maneira de ser uma.

Os olhos atravessavam as lombadas e o monte de livros lidos crescia, enquanto o sol fazia sua leve inclinação e o tempo deslizava pelo corpo da menina, deixando um breve rastro dourado. Também ela entretinha-se, pensou, costurava-se nela mesma, mantendo partes de si entre partes de si, numa diversão muito própria. Pensava ela, e era a verdade. Quem visse de fora, bem sabia, estava tudo contente na presença de si e na presença das Letras. Ela me olha agora e sorri com a clareza dessa fidelidade, saibam vocês que a satisfação costuma vir com certeza. E é assim que é: ela aprende a cabeça, escreve nas paredes com um giz azul clarinho, em letras miúdas anota todo o saber, nos cantos da sua mesma mente.

Quando o sol passou ao pino, os livros lidos já faziam sombra ao casal do lado, e as paredes internas acabaram suas partes lisas. A menina fez questão, até, de rabiscar os rodapés e o buraco da maçaneta, que engolia algumas poucas vogais. Sem ter onde mais caber palavra, olhou ela aos pequeninos escritos, quase sobrepostos em seu tom claro de azul, tão irreconhecível e inalcançável. Letra em cima de letra não faz idioma, deduziu. Foi então descoberto que a menina dessabia ler. Frente à tamanha inadimplência, fez o favor de sair de si e lembrar o pé, que tocava os grãos mais finíssimos. Tirou o dedo das páginas e rodou em 180, como quem cai de um transe. Viu todas as duplas que faziam dela mais uma e reparou como não precisavam de dobras para se entreterem. Entendeu, enfim, a solidão que trazem as coisas (mesmo os livros, que são tão pouco coisas). De mãos desocupadas e lado só de areia, conheceu a menina um silêncio doído.

— É preciso aprender a estar — lembrou o narrador.

No estado vazio, o tempo é tão maior. Mesmo que lhe peça sobras do dia a dia, o tempo exacerbado assusta e precisa ser morto. Agir tranquiliza a existência, e ela, livre de mãos, era agora a vulnerável exposição. O singular é que lhe dava mal jeito, nenhuma posição parecia acolher, como se o conforto fosse exclusividade dos números pares. Amortecia-lhe o pé, a coluna fazia um s essstranho e o rosto respingava sal. Às vezes passava alguém, encontrava ali uma gracinha sequer, e encostava o braço no direito da menina. Era bom o toque. Ficava bem no corpo, conhecendo novos bocados e prolongando o gosto de próprio. Quando chegava no esquerdo é que via já não haver o tato, o braço alheio partira. E não se engane, ela até aparecia como boa, com lugar na areia para colocar a toalha. Um espaço potencial que vibrava na possibilidade de chegada, os grãos formavam-se, mexiam conforme dentro, fazendo desenhos circulares, como quem quer se montar, arquitetar. A menina assistia ao chão brincando diante, na tentativa de obra: a cada braço fugidiço, um tremor. A pequenez da presença é que não sustenta formas visíveis, os grãos tinham impulso, mas não chegavam a força, e os desenhos permaneciam lembranças. Cansadas e débeis.

Hora é que surgiu um braço disposto. Ainda a tempo do sol, trazia vontade de saber. Seus olhos chegaram à areia, encontrou os movimentos granulados e prendeu-se na possibilidade de vir. Soube logo a dinâmica: quanto mais braço dava, mais formas fazia o chão alaranjado. Com o tempo presente, tornou-se um pouco de corpo, até ser o inteiro, e sentou-se ali, no espaço entre ela e ela.

Era vez duas pessoas deitadas na praia. À frente, a areia dançava, fervendo, (um espetáculo!), construindo em si mesma, em alturas mais elevadas que livros, descobrindo o que é ser o que é. E não lhe posso contar, meu caro colega, aquilo que vem dali. Não é nosso a saber. São das duplas de olhos suspensos, atentos e carinhosos. Só deles é, não se esqueça jamais. Só sabe quem fica, meu caro colega, só sabe quem tem coragem de ver.

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