#44 A mistura de lama

Flávia Six
3 min readJul 29, 2021

Lembrei das fronteiras. Das linhas que, ultrapassadas, mudam a língua e a hora do relógio. É curioso isso de ser algo até não o mais ser, curioso e irreal. Mudanças não são assim, do nada, elas não acontecem repentinas, talvez o repentino nem exista. Tudo é construção de tudo e o que vem já está aqui, falta-nos é atenção. Se bem que, se calhar, a mudança seja sim num milésimo, nós é que nos pegamos sem identificá-la e então ela vai revestida de antes, numa falsa sensação de familiaridade. E nos custa o processo de adaptação, lentamente mudar os traços e as rotas, arrastando a breve noção de algo errado. Realmente: a gente tem de é se acompanhar. Sabendo que, mesmo tentando, estamos sempre atrás de nós, o autoconhecimento é de uns passos atrás, o fato de ele ser já muda o lugar e temos de nos conhecer mais uma vez. Ficar parado é uma grande besteira, é se cegar da transitoriedade de tudo. O tudo, que é orgânico (se não em si, no seu redor, que é um tanto de si). Meu amigo Filipe me disse uma vez: a planta estava má porque ao lado estava o mau. A vida se copia, a folha foi crescendo conforme o vidro quebrado, e nasceu o verde já cheio de cacos. Eu tento conter minhas ideias deterministas, busco nosso lugar de escolha, de resistência, mas não seria também a própria resistência um produto do contexto? Quando começou tudo isso do vírus, um homem, muito sabedor de espírito, achou bom de não nos tocarmos mais tanto. Encontrei-o uma vez e mantivemos distância, ele disse que misturamos demais a nossa energia e perdemos o saber de degustar o outro. Você chega a um lugar e tem de cumprimentar todo mundo, se é brasileiro, é beijinho e abraço nas vinte pessoas da mesa, um saco. Nessas vinte pessoas, vamos pegando e perdendo, e fica difícil saber quem é quem, esquecemos um grande proveito do contato. É como os pintores e a cor de lama, é preciso saber misturar cada tinta, senão elas se perdem. A mistura atenta é valiosa. (Tudo atento é valioso). Mas 2020 nos obrigou distância. Um aproximar lento, um sentir aos poucos, mantendo o nosso próprio e conhecendo como o outro reage em nós. Eu digo isso, mas sou do amasso. Quero abraçar até bagunçar e perder um pouco do eu, porque eu gosto da ideia de misturar a energia, como um poema do Eduardo Galeano sobre a noite resolver os amantes que ainda são dois. É uma matemática gostosa de fazer, confusa, eu adoro o que é confuso, na verdade, gosto muito da cabeça, apesar de dizer tanto contra ela (nunca mais que ela contra mim, a safada). Acho revigorante conversar e questionar, mesmo quando é bobo e logo vemos a obviedade por trás. Um namorado costumava rir enquanto me assistia a mim, ele divertido e eu falando comigo mesma, numa autodiscussão, desmentindo as coisas que eu acabava de dizer. Minha irmã diz ser fácil conversar comigo, já que faço todo o trabalho. É que é bom falar, já tinha saudades daqui, coisa muito ótima. É bom falar porque eu vou acontecendo, eu vou me vendo e também eu adoro me assistir. Acho riquíssimo o processo mental de se perder e se encontrar em outros lugares perdidos. A presença alheia é boa, importante, há sempre de haver a quebra da tendência, o forçar fora de órbita, a pequena tela azul que mostra curva nova e uma estranha inteira de estímulos que nos trazem para fora. Que delícia imensa é estar do lado de fora. Obrigada a todos que me trazem.

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