#51 Linhas não são linhas

Flávia Six
3 min readSep 23, 2021

Às vezes é difícil olhar para esta tela. Descobri que não sou tão boa partindo do zero, eu sou melhor dentre opções ou quando me indicam uma direção, só para eu me desviar e abrir novas tangentes. Começar de tudo, assim, já me é mais complicado. Eu sento aqui toda semana para escrever, e tem vezes que simplesmente não flui, acontece direto de eu começar textos que acabam interrompidos no meio por não parecerem verdadeiros para mim. (Esta, por exemplo, é a segunda tentativa da semana). Dias atrás escrevi um texto e meu amigo disse não me achar tanto ali, como costuma acontecer, fiquei me perguntando se isso é mau. No meu processo de escrita, o grande desafio é conseguir sair de mim, não falar em primeira pessoa e poder inventar algo que não seja eu. Mas acho que tudo o que eu fizer será sobre mim, por mais que seja sobre os outros. Tudo o que eu faço sou eu, tudo o que eu vejo sou eu, eu sou esse filtro do mundo, eu recebo e transformo cada pequena coisa em uma espécie de mim. Se busco novos nomes, e personagens, e maneiras de dizer, onde é que eu apareço ali? Qual a linha entre as duas coisas? Sei que posso soar demasiado autocentrada, mas acho que somos todos (assumidos ou não), tudo o que nos acontece, acontece na gente. É bonito esse toque do que acontece em um com o que o acontece no outro, e como ele se expande para o lado de dentro. A vida de fora é toda superfície, eu muitas vezes não sei lidar com a superfície dos outros, talvez seja porque me afundei demais na minha água, e o pouco acaba por me dar mais sede. Fico presa na minha neurose autoanalítica e me assisto a todo momento, ontem mesmo disse que é engraçado sentir saudade de alguém. Às vezes sentimos coisas, e é uma surpresa. Eu olho para dentro e vejo mais de uma, a que age e a que observa. Gosto de dizer que sou amiga de mim, das que dá puxões de orelha, tapinhas nas costas e que sabe se acolher com carinho. Sinto que tudo é questão de intensidade, de saber até onde se colocar, descobrir o limite da linha, por mais que ela esteja sempre borrada. Qual é a medida certa do contato? Qual é a medida certa do apoio e do apega? Quando é que nos cobramos tanto a ponto de tirar da gente? O jogo é se entender e trabalhar na redução de danos. Eu gosto de morar neste lugar aquático, de mistura e cores, mas é preciso se proteger e saber se manter. Talvez seja questão de aceitar que as linhas não são linhas, tatear as mudanças de tom, buscando o terreno onde vai o pé e poder aproveitar essa não fronteira, sem deixar de identificar o eu. Uma coisa que aprendi com a escrita é que não se costuma sentir sozinho, por trás da superfície de cada um, estão os mesmos medos, as mesmas ansiedades e pequenos vícios. O que me faz pensar no Ram Dass, que dizia falar muito de si, não por ser autocentrado, mas porque falar dele era falar de todos, e porque era o estudo de caso que ele melhor conhecia. Se eu escrevo de mim é porque eu sou o que sei, até os outros já vêm contagiados de mim e, se invento personagens, eles também me levam no processo. A gente jamais se escapa, essa é a verdade, o melhor mesmo é preferir não se escapar.

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