#52 Em contato

Flávia Six
3 min readSep 30, 2021

Eu cresci com um jabuti em casa. Nunca criei vínculos muito fortes com animais, mas nos últimos anos isso mudou, e toda vez que visito meus pais eu corro encontrar a Milene. É das primeiras coisas que faço quando chego: vou até o jardim, onde ela fica, escondida dormindo nos cantinhos das plantas, e é só esperar que ela surge, com sua calma e paciência de vida, ela vem me encontrar. Lembro quando fazia yoga ali no gramado e ela ficava me circulando, enquanto eu tentava fazer as posições, uma alegria. Foi no meu contato com ela que conheci sua carência, eu não pensava que jabuti pudesse ser um bicho carente, mas fui passando mais tempo ao seu lado e ela tentava sempre chegar cada vez mais perto de mim, dando curvas quebradas ao meu redor. Dia desses a Milene arrastou a porta do quarto dos meus pais e entrou dentro de casa, acontece de vez em quando, meu pai mandou uma foto. Eu disse que é carência, que ela só quer um pouco de presença. Minha mãe respondeu que só se fosse a minha porque, toda vez que ela entra pelo quarto dos meus pais, ela vai devagarzinho até chegar ao meu. Pode ser que o meu quarto tenha algum lugar muito confortável para o seu casco, mas gosto da ideia de ela sentir saudades de mim. Eu sinto dela, mas nunca tinha pensado no contrário, fiquei emocionada, posso até ter chorado. Imaginei ela querendo me visitar à distância e pensei no carinho que não grita, na carência sorrateira, lenta como a Milene. Às vezes a gente pensa que o outro está bem e, olha, é muito difícil falar de um jabuti sem fazer a metáfora do casco, sinto muito, mas às vezes, às vezes, a gente pensa que o outro é bem demais, e a verdade é que todo mundo precisa de afeto. Quando há disponibilidade de atenção, existe sempre a possibilidade de amor. Tem um filme que diz talvez ser o amor e a atenção a mesma coisa, de fato quando a gente se coloca em algo, aquilo cresce. Gosto também da atenção buscada, de ver o não escancarado, olhar nos cantos da sala e enxergar quem leva algo na mão, quase escondido. Mas quase. Gosto da brecha, tenho pensado muito no meu casco particular, eu vou guardando as minhas faltas e apareço tão forte, quero ter mais a mão aberta, dizer que preciso do outro. Umas semanas passadas chorei no colo de uma amiga, coisa que não fazia há muitos anos, e soube tão bem, receber festinhas na cabeça. A gente só quer um pouco entre a gente, isso é que é, como a Milene, que sente na casca, eu descobri um tempo atrás: se encosto a mão no seu casco, ela acorda, ela sente. Acontece de projetarmos a dureza nos outros, objetificando partes do corpo, como se deixassem de ser sensíveis, como se fossem imunes à ação. Mas tudo é sempre sentido, tudo é sempre orgânico e vivo, e tudo o que vive precisa viver em contato.

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