#56 Sobre música que é momento

Flávia Six
2 min readOct 28, 2021

Reencontrei uma canção doída. Ela fez grande parte de um dos meus anos atrás, mas passei tempo sem ouvi-la. Porque, toda vez, ela me fazia lembrar dos dias, dos nomes, do abraço e do toque. E doía. Para deixar atrás, despedi-me também dos versos que me faziam sentir o que eu não sentia mais. Disseram-me uma vez que a música ativa o sistema límbico do nosso cérebro e que, por isso, ela vem com contexto, sensações no corpo e sentimentos passados. Basicamente, uma música pode sim ser um momento na vida. O meu já fazia anos, já passou e eu passei. Mas o que aconteceu foi que, num acaso, justo em hora de troca, caiu-me Sérgio Sampaio, e eu retomei. Foi uma esquina de lembrança que me deixou curiosa… “Será que posso?”. Atrevi-me e coloquei a canção. No começo foi estranho, memórias vieram involuntariamente, eu as observava, elas eram ultrapassadas e intactas. Dei o play mais uma vez. E outra, e mais uma, e muitas vezes, mesmo muitas vezes. Foi como me olhar no espelho para aceitar o que eu não me gosto. Escutava os sons, encarando e dissipando a realidade imaginária, criando outras memórias. A canção é agora memória da memória, ou memória do fim da memória. Ressignificar é importante. Por vezes colocamos a dor em redomas de vidro, com medo de mexer, e assim a gente a mantém, do mesmo jeito que é, transgressoramente estagnada. Sem sentido e fora do tempo. Lembro de uma personagem da Sally Rooney que gostou da dor, pela possibilidade imensa de mudança brusca. Isso me sentou. É preciso atravessar: tudo tem de ser visto, sem dedos nem frestas, mas no tempo certo. E tem curas tão pequenas, que a gente nem sabe que ainda é preciso. Aprender é um mecanismo que se aprende, depois dele, tudo se faz. Yoga me ensinou muito sobre a dor como processo, de colocar o corpo fora das linhas para ele poder ser um pouco mais. Vai ficando mais fácil, penso eu. E quando a gente aceita a dor, realmente tudo se atravessa. Aquele meu ciclo foi longo duro e demandou de mim muitos olhos para ver. Vez ou outra a vida traz pequenas oportunidades de cura, como uma canção. Eu prefiro sempre ver. Agora a música é livre de mim, e eu dela. É essa a minha pressa: cura é liberdade. Eu não quero estar presa no que me prende no chão.

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