#58 Elogio às gaivotas

Flávia Six
2 min readNov 11, 2021

A primeira vez que morei perto da água foi aqui no Porto. Para além do cheiro que a cidade tem em algumas curvas e de poder chegar na areia pra ver o sol descer no mar, eu gosto muito das gaivotas. Digo isso, e as pessoas me olham como se fosse louca. A questão é que acho as gaivotas bonitas e cheias de personalidade. Um dia, uma delas baixou num rasante e roubou a pizza de um turista. Eu vi, parece até mentira. Mas a verdade é que adoro olhar para o céu e ver alguém voando, me deixa feliz saber que há alguém livre ali em cima da gente. Teve uma vez, quase quando cheguei, em que me sentei perto da Arrábida para olhar o Douro de pés no ar, e passou por mim uma gaivota. Muito perto. Deu a volta e passou por mim mais uma vez. Me olhando. Foi rápido, mas foi grande. Ela queria me ver, ela voltou, o olho dela estava em mim, eu sabia, foi tanta sinceridade que houve troca: descobri o que era voar. E chorei, penso nisso às vezes. Talvez esse momento tenha me conectado com elas de alguma forma ou é só o exercício de me tirar de mim e chegar nos outros para sentir algo emprestado, mas ontem aconteceu algo parecido. Eu estava perto do céu, num momento de calma, e vi uma voando. Só uma, bem longe de mim. Virei a cabeça para acompanhar seu voo e fiquei arrepiada. Não senti o vento, não senti a falta de gravidade, eu só senti o que é voar. Vejo tanta gente reclamando das gaivotas, mas admiro a linha que elas traçam, e a resistência. Nós tomamos seu espaço, elas nos roubam pedaços de pizza. Mas bom mesmo é vê-las voar, especialmente quando é fim de tarde e o céu já está todo laranja meio rosa, e elas todas fazem seu caminho de volta. A revoada, como diz minha mãe. Me pergunto onde é essa volta, onde elas dormem. Gosto de imaginar todas elas uma do lado da outra bem fofinhas, na inversão do dia a dia, na imagem oculta da faceta social de resistência. Ali elas descansam para no dia seguinte voltar pro céu. Me dá alegria ver bicho bater asa, eu gosto tanto de bicho: a simplicidade de ser e a falta de mente. A mente, que nos pesa a cabeça. Vai ver elas estão também matemáticas, o tempo inteiro calculando lugares e se o céu já está laranja o bastante para voltar para casa. Mas acho que não, não faria sentido. Se elas fossem como nós, acho que não seriam capazes de voar.

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