#65 Devaneio em trânsito

Flávia Six
2 min readJan 20, 2022

Eu morava a 393 km de casa. Ia visitar a minha família e passava 18 horas do final de semana dentro de um ônibus. A viagem era noturna e, no silêncio do escuro, eu aprendi a encontrar algumas verdades sobre mim. Sempre gostei de motivos para parar, e viagens têm sabor de suspensão. O intervalo entre A e B não me parece perdido, porque gosto de descobrir as pequenas frações de cada letra, como se espiasse um vão entre os fonemas. Era nesse entrelugar que a minha cabeça acontecia, e eu me tateava por dentro. Às vezes escrevia nas notas do celular, nos lapsos da mente que ainda hoje tenho aqui, e onde há cerca de um mês anotei: “A gente não se escapa”. Porque somos líquidos, e cada fresta é uma chance de infiltrar. Eu escrevo agora em trânsito, num trem que corta o tempo em diagonal, me mostrando luzes do que perco no lado de fora. Mas o céu está escuro e, quando olho, o que mais vejo é o próprio reflexo de mim. Porque a vida tem suas metáforas prontas, e é no tempo suspenso a minha chance de espelho. Enquanto flutuo num espaço que me avança a outro e inverto o meu avesso, buscando dentro os olhos que me mostram inteira. Quando não tentamos encaixar tudo no lugar, o todo mostra o lugar correto de si. E é no silêncio. Ele é a verdade que existe, ao fugir de si mesmo e ir se desmascarando em si. Não há nada que me mova mais que o próprio movimento, nem que seja ao redor da mesma coisa, como uma dança suave de um casal de velhinhos. E gosto do sigilo da cabeça, de viver o meu mundo secreto e andar a quilômetros de luz mesmo quando apareço muito bem parada. Penso nisso enquanto o trem passa veloz em tudo o que me rodeia, e eu me sinto elevada na minha perspectiva de cima. Mantenho a distância de mim mesma que é para ficar mais perto de quem sou. Cada desculpa que tenho para me olhar pelo ombro é uma que coloco bem no centro da mão, sem fechar os dedos. Só para estar ali enquanto não se dissipa, e eu posso apreciar o vai e vem de uma consciência emprestada, mas que é tão semente e funda dentro de mim.

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