#75 Desculpa

Flávia Six
2 min readApr 7, 2022

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Existe força na possibilidade: é o espaço vazio que dá lugar a qualquer coisa. Quando olhamos com atenção ao silêncio, ele se brota em outra, enraizado na circunstância de se poder ser. O meu lugar é na situação, e às vezes faz muito que bem uma desculpa: como as despedidas, que são chances de falar o escondido. A nossa verdade é tão cheia na gente que esquecemos que o outro não sente o nosso peito, e é preciso traduzir. Não em esforço pensado, mas na ausência de filtro entre um lado e outro, evitando a película que nos divide entre essência e expressão. Pois é preciso nos desculpar de sermos a nossa essência, e gosto de tudo que nos salta o peito. As despedidas vêm com palavras bonitas dos olhos bondosos de trás, os olhos que nos lembram do prazer de se ver alguém assim, de se encostar no ombro, e de cruzar os dedos das unhas pintadas de amarelo. Mas existe romance no lado das costas: seria o que fica a verdade do que foi? Ou ainda a vontade do agora num retrocesso de respostas fáceis? Tenho pensado muito na amiga que se despede há meses do avô que partiu. É tão doloroso, mas é tão bonito. Cada despedida diária é o retorno de um amor, e existe beleza nas coisas que são tristes, porque a tristeza é às vezes a lembrança do que foi feliz, e se invertermos o tempo, ela pode também ser algo a se sorrir. As datas vêm para nos desculpar de tanto sentir. O que me faz lembrar da menina que disse lhe terem colocado na cabeça o amor como coisa cafona. Mas que por entrar muito fundo nela mesma, ela entendeu a urgência grande de sentir, e hoje se acha descolada quando abre o peito para contar que ama, mandando mensagens grandes no meio da noite: pois é preciso coragem. A desculpa é uma presença de quem se procrastina. Mas eu gosto mesmo é de excessos, de quem sente na saída, no pathos que puxa um íntimo que ainda pulsa, desconhecendo o amor amortecido e arquitetado no silêncio de um dia se dizer. Gosto é de quem se despede de culpa e coloca o coração na corrente sanguínea, mergulhando o corpo inteiro e deixando no outro a digital de uma presença. Como o retrato alheio da nossa alma.

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