#76 Alter ativa

Flávia Six
2 min readApr 14, 2022

E em ausência de ser uma, busquei nos outros a confirmação de mim. Com os olhos muito curtos, fugiu-me a finalidade do corpo e me vi feito pluma a levitar por entre as nuvens de gente alheia. Tomei cores só pelo prazer de me encher, e desconheci os traços do meu rosto por olhar um espelho que não percebe a parte inteira que sou. Minha pressa oposta exige um outro que encoste na pele, e eu mantenho cada um bem colado a mim, espremendo o ar da atmosfera nas bordas do meu limite. Me encolho nas pessoas que me tiram a falta e depois tenho de me encontrar outra vez. O que nos acontece a nós, somos nós que o fazemos: mas a verdade é que flutuar assusta. Estar solto entre o muito e sentir o toque breve daquilo que me encosta. Porque nós nascemos colados, e depois passamos a vida a reparar o corte feito no umbigo. Voltando à conexão última só para não perder o traço, e buscando no atraso das costas um pouco mais de tempo para pensar na ordem que se faz. Com toda a gente ao meu redor, o mundo me parece mais quente, quente que queima os pelos que arrepiam o braço, e a minha voz se sabe rouca como um sussurro amargo do som que mal sai de dentro. E há desespero no abraço que aperta: eu estou ainda a entender o tato do valor da distância, pois algo no excesso me fascina, e me cansa, e eu busco a diferença entre aquilo que é meu e aquilo que me faz vítima de mim. Hoje eu gostava é de ser pequena, como quem fica no bolso da camisa, e isso não seria nada triste: eu olharia os passos que me fazem à frente e diria comentários de leveza. Quero caber nos outros sem ter de me encolher, mas também não quero me fazer tão grande a ponto de não haver espaço que eu possa ser. O outro me confunde inteira em descobrir o que eu sou e o que há por descobrir no espelho que ele é de mim. Mas a minha velocidade altérea catalisa as etapas, e eu sou coisa ultraprocessada, em torres e carros que borram uma imagem a passar pela janela. E é bonito o abstrato das cores, sinto-me a evoluir com a rotação de uma vida toda, mas se por um segundo eu pudesse rezar: eu rezaria para ser simples. Para acabar com a busca que não existe, aceitando o lugar de cada um na minha existência, em longitudes múltiplas e proximidades breves que não distorcem o ar, nem criam redemoinhos no pulmão que eu respiro.

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