Textos sem pé nem cabeça #31

Flávia Six
2 min readFeb 25, 2021

Eram duas e meia da manhã. Fui à janela, escancarada, o que é raro em noite de fevereiro. Por falta de bateria, não havia música, o que foi bom, afinal. Porque chovia. Fiquei ali um bom tempo, olhando uma praça sem ninguém e sentindo a umidade do ar. Eu estava contente. Mas aí me veio uma vontadinha, aquela ânsia de aproveitar o bonito pra ver se me sai um verbo. Me decepciono. Se o momento era bom, queria eu aproveitá-lo sem minha parcela menor, a que quer maneiras de transformar pros outros. Não havia mais ninguém ali, era um tempo meu. A necessidade das narrativas me faz buscar essas brechas que me despertam palavras. E acho bom ter o olho atento, mas há vezes em que não o queria pela cabeça. Queria só ficar ali, à janela, enquanto a cidade dormia e eu me sentia especial por estar. Esse instante nem ao menos é mais meu, porque, apesar de ter contido a tentativa de versos, cá estou, expondo-o pra vocês. Acho que falhei. Esses dias tive comigo outro momento bonito, ele foi tão cru, tão singelo e pequeno, sinto que contá-lo seria corrompê-lo. Prometi que não o faria. Guardo pra mim, nem ao menos no diário tive coragem de escrever. Mas falei sobre não compartilhar, e isso já é forma de compartilhar. Como fiz agora, de novo. Sigo falhando. Pois é, somos viciados. As redes que nos tiram o social e nos fazem aproveitar no outro que comenta a foto meses do tempo. Um tempo que foi depois, depois atrás, e muito atrás presente. Eu lembro: um dia me aproximei de mim, entendi minhas falas e, de repente, achava que era obrigação torná-las livres, verbalizando. Passei anos na necessidade de falar, de exercer o pragmatismo urgente do que quero e do que penso. Só assim seria livre em mim, eu pensava. Isso tem uns pontos de verdade. Há alguns anos, entretanto, ando o caminho oposto. Exercito o meu silêncio porque penso que nem tudo precisa ser dito. E palavras são tão pequenas, realmente. Como poderia eu diminuir um momento de chuva em letras que não comportam? De fato há belos poemas torrenciais, mas me pareceu uma perda. Porque ao parar pra escrever eu não veria mais a praça, os olhos seriam de dentro e do que faço eu dela. Era desnecessário o mergulho. Escrever seria me encher de mim, quando já estava de chuva até a boca. Não sei se esse tempo era tanto meu quanto pensei que fosse, acho que me esforcei em me esvaziar, o que faz dele só o tempo. Quanto a mim? A única do mundo desperta, uma convidada, pude ver com ouvidos a água que batia o chão.

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