Textos sem pé nem cabeça #34

Flávia Six
3 min readMar 18, 2021

Me vi envergonhada. Uma vergonha tão pequena, tão minúscula, tão mesquinha. Pensando bem, acho que não quero falar sobre isso, tenho vergonha. Mas o acordo é não evitar o que se quer evitar, transparência. Espero, entretanto, não haver tantos leitores. Veja você: ainda vai a tempo de desistir. Talvez eu esteja a aumentar, se a vergonha era pequena, ela acabou de crescer. Afinal não é nada, desculpa, que vergonha! Agora ela vai parecer mais importante do que realmente é, não posso nem começar o texto de novo porque já vou na oitava linha. Aqui não há borrachas. Mas imaginem só a vergonha que sinto de dizer que tenho vergonha da minha vergonha. Vou é falar na lata porque esse suspense (já na décima linha) está piorando a situação e escrevo de rosto vermelho, o dedo com medo das teclas ::::::::::: Minha vergonha é de tentar. É isso. Não falo de tentar no sentido de arriscar — aí até faço com gosto. Falo no sentido de ficar tentando, tentando, tentando, tentando, tentando, tentando, tentando, tentando, tentando, tentando. Tenho vergonha de que me vejam nessas eternas tentativas, porque elas parecem demais com eternos fracassos. Tentar é ainda não conseguir. E fico com receio de falar sobre isso porque eu sei da importância de tentar. Experimento remendar por cima, dizer pra mim que é assim, que se aprende na prática e que não é só resultado. Um tempo atrás assisti ao filme A Professora do Jardim de Infância. Conta a história de uma poeta frustrada, que passou a vida tentando escrever e nunca conseguiu deixar de ser medíocre. A mediocridade. Taí outra vergonha doída. Vergonha ou medo. Medo de ser? Vergonha quando penso que sou? Hoje estou nua. Um foco de luz bem fundo. Arde quando passa, arde ainda mais quando toca o que não é meu. Nem sequer tenho me deixado tapar com os dedos, a ver se me economiza a dor. Que é muito minha, talvez não tenha porque dizê-la. Peço desculpas, que vergonha. Eu tenho medo. Pavor, de ser medíocre e, pavor, por dizer isso e, pavor, alguém ler e pensar: puff, medíocre. Sou vítima da cabeça. Talvez me force a falar porque, exposta, ela pareça ser menor. Quando o medo se mostra vergonha, a gente se fecha, se protegendo de algo que está dentro. Isso é: se nos fechamos por medo, nos fechamos com o medo. Curioso. Me vejo na obrigação de ultrapassar as minhas tentativas envergonhadas. Que desperdício é não aproveitar pra treinar o alemão com um gringo achado na rua. Que desperdício é deixar de fazer porque o caminho é medíocre e vou precisar de muitas tentativas, incontáveis tentativas. Mas cada uma delas é uma a menos. A Flávia de 2019 sabia. Ela olharia pra mim e diria: é sobre aprender. Às vezes me imagino no colo do meu eu passado. As minhas mãos entre os meus cabelos, meus olhos doces como quem diz que tudo bem. Tá tudo bem. Pode chorar agora, eu tô aqui. Tá tudo bem. Tá tudo certo, você é tão certa. Tira esse peso, limpa esse peito. Tá tudo certo. Tá tudo bem. Meus olhos olhando os meus olhos fechando, e todas nós choramos. Às vezes me vejo no meu próprio colo, vou me dobrando no meio até tocar tudo de mim. Me abraçar e reconhecer o meu completo. Fica mais fácil assim: lembro que não sou só.

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