Textos sem pé nem cabeça #35

Flávia Six
3 min readMar 25, 2021

Lembro-me bem. Era noite de setembro, por volta das 3h da manhã. Eu e um espanhol falando de palavras. Estávamos na parte de fora do metro da Trindade e conversávamos, só. Há quanto tempo não converso só, com alguém não importante. Mas as palavras, lembro-me bem. Ele me disse que acha madura a nossa saudade. Na Espanha não é assim, ali a nostalgia não é bonita, é só triste, quase possessiva. Diferente do português, segundo ele. Eu penso nisso. Volta e meia, em hora banal, me vem essa ideia. Um olhar pra trás, pesado, melancólico, ao mesmo tempo, feliz do que foi e é. A falta preenche, uma saudade madura. Ele ainda me contou a sua favorita em espanhol: desarrollo. Com o enrolar e duplicar demandando uma certa pausa da minha parte. O desenvolver em forma, desarrollado. Ali também aprendi o ademán, a que respondi com trejeito. Apontei o radical mão, ele viu graça na tríade inicial. Gosto muito de falar do falar. Vez outra converso com o Franz, que desconheço do pescoço pra baixo. Nos deparamos online e fazemos ligações esporádicas pra trocar as línguas: o português e o alemão. São boas as conversas, é sempre bom ver visitantes do meu idioma. A dificuldade nas nasais, o portunhol, tempos equivocados e a dúvida de como se escreve. Me pego pensando nos termos pra explicar melhor como cada um acontece na prática. Faço as correções, mas ainda assim vem ele falando do companheiro de piso. Às vezes manda mensagens escritas e me parece tão poético o pequeno lugar errado de cada coisa. “A vida é um pouquinho triste aqui agora” “cada dia é cinza e frio. Mas sobretudo me sento bem e com otimismo”. “Na segunda vou ser livre de novo”. Pra além da fala, gosto muito de interagir com outras culturas. Tento conter a minha crença determinista, mas somos mesmo produtos do entorno. A maneira de pensar, o jeito de reagir, tudo acaba por ser um pouco diferente. E realmente devo gostar de ser brasileira porque vejo graça no outro ao achar mais graça no meu. Lembro uma vez, disseram pro meu braço dado que ele tinha sorte por eu ser do Brasil, somos “o povo mais alegre que existe”. Eu ainda sorrio por isso. Sorrio agora, enquanto escrevo. Fico feliz por ter acesso a esses outros: os braços, as palavras e a cabeça sem corpo. Mas é minha raiz de lá, meu sangue latino, que me faz aproveitar os encontros e tudo aquilo que me falta. Pode ser irônico falar isso longe, mas o Brasil é o melhor chão que já pisei. Embora me pareça que, independente dos passos dados, meus pés seguem lá, enterrados no solo fértil de uma diversidade subterrânea. Ainda me nutrindo, mesmo a um oceano de distância.

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