Textos sem pé nem cabeça #37

Flávia Six
2 min readApr 8, 2021

Começou no umbigo. Depois foi se espalhando, como uma ameaça, despertando a epiderme interna e dobrando os meios do meu centro. Era novembro no estômago. Voltei a sentir o que tinha passado, embora só agora tenha um certo passado. Mas de verdade: nunca passamos, vamos acumulando. Fica tudo aqui, na parte de dentro, nos compartimentos do corpo: piadas na vesícula, quedas no fêmur, zangas no dedo indicador e frustrações no lóbulo esquerdo. Vez outra, por estímulo ou sem motivo aparente, algumas luzes se acendem. Meu estômago gela, e eu volto pra novembro. Pra 2015, pra escola, pra cama da minha mãe. Estou em outro lugar, quase tenho outra cabeça, ao menos sei ter outra cabeça. É curioso, experiencio memórias-ambiente. A sensação de outra casa, de outra situação, daquele abraço, das mensagens no carro. A sensação. Novembro lembrou de mim, mas não o sou ainda, os meses passaram, é já ano novo, não sei o que fazer com isso no umbigo. Há tanto tempo à mão aberta, se algo surge no centro, não sou capaz de tocar o toque afundado nas linhas. Já não quero palavras, criar minhas histórias e enredar os contextos. “É importante sonhar”, diz minha terapeuta, eu sei. Mas a ideia não chega no chão, e meus dedos pedem urgência. Surgem raízes na palma da mão, presas à pele, não consigo manuseá-las. Apesar de serem bonitas e brotarem à minha vista, algo se confunde: penso ser meu o que é simplesmente eu. Espero a realidade externa, estar separada, poder ver as bordas que ela contém. A ver altura no diálogo do olho. Eu só tenho brotos psicossomáticos, os chamo promessas e não se cumprem, fico triste. Coleto raízes, elas secam, e caem, e ressurgem, e histórias de palavras contadas, e escritas, e eu me lembro, e rio da minha própria cara. Um riso vácuo, comprido, de tantos anos, e estou velha, tenho rugas por dentro, continuo rindo, a barriga dói. Meu refúgio é autofagia, me alimento do que eu mesma produzo, mordendo minhas partes, comendo meu estômago quando novembro aparece por ali. Uma saciedade virtual, que mastigo vezes vezes vezes, e tenho mais fome. Minha boca está cheia de mim, eu preciso do lado de fora.

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