Textos sem pé nem cabeça #41

Flávia Six
3 min readMay 6, 2021

Uma mulher foi violada. Oito e meia da noite, quase claro ainda, não longe daqui. Chegando à porta de casa, de fones no ouvido, agredida assaltada e violada. Ando muito a pé, ando muito de fones. Minhas pessoas falaram: tenha cuidado. Por ser raro e recente, algo paira no ar, eu redobro meus atentos, tiro a quietação, e me lembro da dor feminina. Liberdades tomadas me entristecem muitíssimo. Até quando tratamos sintomas? De repente, estamos todas despertas do pavor só vindo a nós: constante, aterrorizante. Cruel, por encostar exatamente no lugar do prazer, invadindo, distorcendo, corrompendo… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … …… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … …… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … …… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … …… … … … … … … … … … … . E dói o alívio de não ter sido eu, quando não deveria ser ninguém. As frases estão cansadas, mas seguem necessárias. Quem faz algo desses encontra direito em um corpo que acha ser para si: a mulher de servir desejos. Tão antiquado, por que ainda falamos disso? Meu redor às vezes engana, diz no ouvido que está tudo melhor, que as pessoas repensam, que até mudaram, diz que estamos maiores. Mas a rua noturna me lembra o perigo de ser uma mulher só. Uma vez, voltando a pé de uma manifestação feminista, coloquei a chave entre os dedos enquanto os gritos libertários ainda vibravam minha garganta. O medo da mulher é que nos roubem o valor que levamos no corpo. É um roubo tão cruel, tão cruel. É um roubo. Roubam nossa casa, e muitas vezes são anos a reencontrar as partes, recriar os membros, as veias, a pulsação. Ressignificar o que foi marcado perversamente por alguém que não viu nada além de um corpo. Ontem fui levar o lixo logo ali, era tarde da noite, e encontrei um homem. O ar pairando. Ele bebia uma cerveja. A presença me assustou, o álcool me assustou, respondi seu olhar com a minha maior cara de má. Voltei com os dedos entre chaves, mais uma vez. Era só um cara bebendo cerveja, queria eu poder ver só um cara bebendo cerveja. Em vez de uma ameaça, em vez de me sentir exposta e com vontade de ser repugnante e protegida. Além das minhas próprias, não posso não carregar a história de outras: todas as histórias de todas as mulheres existem dentro de mim. Eu não conheço a mulher da história de agora, sou incapaz de saber o que ela sofreu e o que sente. Mas ao mesmo tempo, sei, ao mesmo tempo, sinto. Queria poder abraçá-la. Sentir no coletivo para aquietar o risco de ser sozinha, é bonito: acolher, amparar e movimentar, por outras. É importante, não nos esqueçamos do importante. A ver se um dia vamos a tempo de dividir coisas melhores, coisas mais bonitas. Coisas de sorrir.

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