#81 Sem medo

Flávia Six
3 min readJun 25, 2023

Os dias nunca me foram tão do mesmo. Eu encontrei frequências e uma estabilidade que ainda é estranha no meu peito. Porque eu sempre fui movimento: andava como quem dança e tive tanta pressa em chegar a um lugar que fosse parte de mim. Quase corri, despedi-me todos os dias, troquei de continente e mudei a língua mais de uma vez. O fio de dentro era tão comprido também que eu vivia na inquietação de projetar o meu corpo à frente, em busca de dar luz a quem eu sou para além do que depositaram em mim quando eu era pequena. Custa tempo, e muitas vezes nos exige quilômetros. Por isso eu andei. Lembro-me da minha mãe que viu graça quando disse que estou em constante processo de mudança. Pois estou, e estamos. E eu sei que faço tudo grande, mas isso é só para poder enxergar mais detalhes da pele. Todos esses caminhos foram em busca de mim, e eu experimentei tanto. Eu abraço o máximo que posso só para depois me lapidar, deixando apenas o que afinal já faz parte do meu corpo. Gosto de pensar que me aprendi no que sou agora, a última mudança foi uma pequena revolução que me abriu espaço para receber amor. E tenho estado um pouco bêbada dessa felicidade, como quem sente enfim o calor do sol. Se penso no meu caminho todo, percebo que já não tenho a mesma energia. Pode ser que os passos me levassem para algo que encontrei, mas sinto que a vida vai nos desmanchando um bocado. As certezas de 20 anos são postas em causa, e vamos ficando cansados. Hoje me sinto um pouco velha: doem-me os joelhos, a ressaca me deixa doente e eu tenho medo. Penso que gostava do caos porque ele me mantinha alerta. Eu estava sempre perto de mim, acompanhando a minha descoberta. Mas precisei crescer muito para ser capaz de romper com o eco de mim mesma. Pari-me a este mundo, e talvez ainda me falte entender o espaço da alteridade. Por isso volto sempre ao devaneio do outro, para ver se entendo o que sai da minha própria boca. E hoje está tudo tão certo que eu deixei de me mover. É um pouco de cansaço por ter andado tanto, mas também tem o medo. Medo do inseguro que vem depois da pequena revolução, e medo de perder o que me faz tão bem. No ano passado, quando virei a vida do avesso, eu coloquei a carta da Roda da Fortuna na minha parede. Todos os dias, ela me lembrava que tudo gira e que as coisas iam melhorar. Aquilo me dava força e fé, duas palavras com tanto de sinônimo. E a roda girou, trazendo uma felicidade que eu nem sabia que merecia. Tirei a carta da parede, guardei o baralho e nunca mais vi vídeos de tarot. Já não havia procura, e eu podia descansar um pouquinho. Mas a questão é que o movimento nunca cessa, e é tão fácil nos perdermos. Se eu fixar os meus pés no chão a fim de manter o que a vida me deu agora, eu vou ficar cada vez mais distante de mim. Porque eu sempre vou seguir, estando comigo ou não. E quero reencontrar o ritmo de andar ao meu próprio lado, achar a minha fonte criança, que tinha alegria quando ia para a frente. Não posso cristalizar esta felicidade, senão ela vai aos poucos se tornar opaca. Talvez os meus passos tenham sido sempre de busca, e agora preciso aprender a manter. Eu quero saber amar em movimento e deixar a felicidade ser o que ela é, sem que eu a tente moldar ou manter numa concha da mão. Quero me despir do medo para que as coisas fiquem por elas mesmas, e não porque eu as colei em mim.

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